sexta-feira, 19 de junho de 2009

O Bresson da Cruz Machado


Entre fotos de mulheres peladas, garrafas de cerveja vazias e copos ensebados, esconde-se o entrevistado. Com a barba por fazer e cabelos quase compridos, que escondem uma grande cicatriz por trás da orelha esquerda, a figura toma cerveja em goles grandes, sem frescura. As garotas do bar que passam fazem questão de cumprimentá-lo: Oi Claudinho, quanto tempo ? Como é que está ?


Beirando os trinta e seis anos, o grande fotógrafo de revistas de sacanagem, sites de pornografia e agenciamento de acompanhantes continua firme no seu trabalho. Mora numa pensão no Largo da Ordem, tem seu pequeno estúdio num prédio antigo no coração do centro da cidade e entra de graça em quase todas as casas de mulheres. Fotografa com uma câmera antiga a dsc-r1, das primeiras digitais boas e junta dinheiro para sua próxima aquisição, a nikon d2hs.


Claudinho, para começar. Onde você nasceu e como aprendeu a fotografar?

Nasci em Ribeirão Claro, norte do Paraná. Cidadezinha pequena. Aprendi a fotografar com uma Polaroid que um cara me vendeu num bar. Acho que era roubada, o cara vendeu muito barato. Ela que mudou a minha vida.


E como um cara vem de Ribeirão Claro para o mundo da sacanagem?

Pois é. Comecei a fazer uns trabalhos por lá, em feiras e festas. Churrasco de político. Então me convidaram para trabalhar na Prefeitura. Era lá por 95. Vim com o prefeito e a comitiva pra cá. Ficamos num hotel no centro. Desde essa época não voltei mais pra Ribeirão. Só quando minha avó morreu.


Qual a situação mais bizarra que a profissão fez você passar?

Já passei cada uma. Uma vez eu tava fazendo uma daquelas fotonovelas de sexo, estilo revistinha sueca. Quando o falecido Luiz Grande ( lendário dono de casas de mulheres) apareceu com três anões e uma negra linda. O negócio é que os anões estavam bêbados, loucos sei lá e começaram a brigar entre si. A moça ficou revoltada e se mandou. Aí saímos, eu o Luis pela madrugada para tentar convencer uma menina a encarar três anões loucos.


Muita luz e pouca roupa ou muita roupa e pouca luz?

Muita luz e pouca roupa.


Com photoshop ou sem?

Photoshop, sempre. É meu melhor amigo, companheiro de trabalho.


Você já se envolveu , digamos intimamente, com alguma das modelos?

Não meu filho. Sabe aquela, onde se ganha o pão não se come a carne. Não dá pra misturar.


Que outros trabalhos até descobrir a sua vocação?

Trabalhava num armazém e ajudava o sacristão nas missas e festas lá em Ribeirão. Ficava olhando pros fotógrafos de casamento, com aqueles velhos flashes manuais e pensava, porra, esses caras é que são legais.


Usa drogas, bebe, remédio de tarja preta?

Já tomei de tudo um pouco. Hoje em dia fico mais na cervejinha mesmo. To ficando velho.


Tem algum ídolo?

Caras como JR Duran, fotógrafos de revistas estrangeiras que ganham uma nota preta pra fotografar mulher pelada.


E quantas mulheres já passaram pela tua lente?

Olha só, uma conta rápida. Umas 5 mulheres por semana. Um ano tem 48 semanas. Eu tô nessa de só fotografar mulher há treze anos. É bastante mulher. (Conta do entrevistador: 847 + 2480 = 3327 garotas)


E, diz aí Claudinho, não cansou ainda de ver tanta mulher pelada?

É, cansar eu não cansei. Só não me emociono mais tanto. Mas cansar a gente nunca cansa.


O que você queria fazer nesta vida e ainda não fez?

Eu queria viajar o mundo trabalhando. Morar na mansão Playboy, dirigir uma Ferrari, queria ter um programa de Tv, minha própria Revista, tem tanta coisa boa pra fazer. Eu adoro viver. O dia em que eu morrer pode ter certeza de que foi a contragosto.


Pedimos a conta. “Opa, deixa que eu pago essa”, Claudinho abre a carteira, paga e volta a seu estúdio pra mais uma jornada de trabalho. Fotografar mulher pelada.


Patrick Belem



quarta-feira, 3 de junho de 2009

Quem vem pra beira do mar, ai, nunca mais quer voltar




O velho pescador, já nos seus sessenta e poucos anos, aparentava oitenta. O sol e o mar lhe judiaram o couro. E a fumaça, que impregnava a casa-de-fogo em cada refeição e cada café, marcara seu rosto. “É bom pra limpar os pulmão” – dizia, espremendo os olhos, na hora do almoço.

Seu Cardoso, como é chamado na vila, é um jovem senhor. Mistura de pescador com índio – raça boa – que permanece forte como um búfalo, mesmo entre seus ataques de tosses. Seja por sua rica dieta composta por peixes, suas mandiocas e feijões que cultiva no quintal, seu cafezinho da tarde e a preciosa cataia, o uísque caiçara que embala os fandangos do fim de semana.

Seu trabalho é simples e o faz com a alma, sair matar uns peixes com seu neto. Faça chuva ou faça sol – vão os dois rumando o horizonte, com suas redes penduradas no ombro, e ficam lá, horas, puxando aquelas cordas pesadas. Trabalham enquanto apreciam as infinitas composições de céu e mar. Ora céu azul celeste com mar verde, ora céu preto, de tempestade, com mar marrom. Diz que é bom matar os peixes na chuva, que eles não percebem tanto o movimento dos fios na água. Para usar as redes, tem o jeito certo de desenrolá-las, entra-se no mar até mais ou menos a cintura e dá-se corda, até o mar esticar a rede todinha. Depois que estica os 15 metros, vem andando contra a maré e puxando, carregando no braço o peso da água e do que a rede pegou, fechando e prendendo o peixe.

Depois de cada pesca do dia, chegando ao rancho, Seu Cardoso pega sua faca preferida – que tem seus quarenta centímetros de lâmina, afiada na pedra - segura o peixe com força pelo rabo, raspa suas escamas e finalmente, com a habilidade de gerações e gerações de pescadores, faz os cortes dos filés. “Não tem coisa melhor que o peixinho direto do mar”. Quando há amigos da cidade acampados em sua casa, o velho os divide com todos. Sem pedir nada em troca, “isso aqui é tudo pra nós”, se justifica. Os restos dos peixes - intestinos, cabeças e ossos - são divididos entre o gato, seus cachorros Flecheiro e Brejeiro, e um casal de lagartos que aparecem quase todos os dias para buscar a boia. Os peixes que não come, seu neto se encarrega de levar para a vila, pra vender. O que rende seu quilo de café, sal, açúcar, farinha, algumas bananas e às vezes um pãozinho – artigo de luxo para o velho.

Seu Cardoso está sempre lá, sentado no seu ranchinho, resistindo. Seja negando a energia elétrica que já chegara na vila há tempos, seja contando suas histórias maravilhosas do “tempo de dantes”. De caçadores e homens livres, dos navios que acostaram lá, da época que os índios ainda moravam na ilha e todas as coisas que se podem acontecer durante três gerações na praia deserta de uma ilha.

Com seu boné enfiado na cabeça para proteger do sol escaldante e esconder sua careca, sempre deixando seus longos cabelos brancos para fora, escorridos, o velho carrega uma expressão forte no rosto. Seus olhos negros revelam a alma de um cidadão da mata, de um marujo do mar, e sua barba, em toda sua elegância, lembra a de Dom Pedro II em sua juventude. Longas costeletas brancas que descem pelo rosto e emendam um grande bigode.

Chegando na praia deserta notam-se longos pedaços de pau, altos, com bóias coloridas penduradas em suas pontas, que indicam a clareira onde estão três construções de madeira.

A primeira casa é alta, feita com simplicidade. Madeiras que acompanham o velho desde sua casa anterior, ainda do tempo de seu pai, “madeira boa”, como este gosta de definir, “não se faz mais dessas hoje em dia”. Sobre a porta, um par de chifres de búfalo protege a casa de entidades não desejadas e lembra sua juventude, quando a ilha ainda não era parque nacional, do tempo que cuidava dos búfalos.

O rancho – como o velho chama – é a casa do meio. Dois cômodos, feitos no capricho. Sobre a porta de um metro e sessenta, umas letras rabiscadas e uma pequena boia pendurada, achada na praia.

O segundo quarto é onde ficam seus utensílios. Martelos, pás, redes, linhas, cordas e todas as coisas úteis que vêm do mar. Num canto estão as redes de quase todos os pescadores da vila que vêm pescar na praia deserta. “A turma vem pescar aqui, toma um cafezinho, come uma coisinha.”

A terceira construção é a casa-de-fogo. Feita com bambus colocados uniformes, deixando vãos para serem amarrados com cordas, para nenhum animal da floresta roubar sua comida. Na hora dos mosquitos, durante o verão, o velho fecha os vãos com tábuas, e a fumaça fica presa, amenizando um pouco as picadas. O teto é de palha trançada, que Seu Cardoso se orgulha ter aprendido com a mãe.

Em frente à casa-de-fogo, há um sistema simples de captar a água da chuva. Um cano que liga a calha do telhado a um galão, fornecendo sua água potável. Ao lado, uma grande horta onde estão centenas de pés de mandioca, tomateiros, pés de feijão, melancias, abacaxis, maracujás e abóboras. Tudo cercado caprichosamente com redes de pesca e galhos tirados da mata. “Meu pai sempre dizia pros pobres virem morar na praia deserta. Tem água, tem peixinho fresco e ninguém pra incomodar.”

Entre noites de fogueira, regadas a cataia e violão, comenta que sabe quando a morte vai chegar. Que a praia deserta nunca mais vai ser a mesma. E parafraseando Caymmi: “E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra.”


Ao grande amigo Antonio Cardoso,

Patrick Belem.